domingo, 18 de junho de 2017

Os escândalos de corrupção e suas máscaras ou Por um feminismo que não se preste a reerguer o que está apodrecido

Por favor, amigas! Não me façam compartilhar a capa da Revista Época só porque desta vez ela publicou uma notícia que eu gostei. Pra mim esse tipo de jornalismo continua sendo lixo. Está no mesmo nível daquelas revistas que ficam dando spoiler das novelas. Esta repetição e sobreposição de denúncias, áudios, vídeos, delações e coisas do tipo, só servem para causar escândalo e nos paralisar.
Era pra ser só um post para o facebook sobre a capa da Revista Época desta semana, mas acabou virando textão...

Os escândalos de corrupção e suas máscaras ou
Por um feminismo que não se preste a reerguer o que está apodrecido

Li há poucos dias o livro: Em busca do real perdido, de Alain Badiou, que, aliás, eu recomendo muito. O autor discorre sobre a função do escândalo na atualidade – quase sempre de corrupção – que seria o de revelar à opinião pública um pedacinho do real que nos assola, mas apenas para mascará-lo. É importante, primeiramente, entender que o conceito de real do qual o autor se vale é o real lacaniano. O real como aquilo que aparece em queda do simbólico e que também nos põe em queda, ou seja, o real como aquilo que nos atravessa de modo a desmontar o semblante ou a máscara que nos organiza coletivamente. Assim sendo, só se acessa o real por meio da percepção sensível, das emoções, do espanto ou da angústia. O real sempre impacta nossos afetos.

Dito isso, Badiou traz no livro a ideia de que o escândalo tem a função de mobilizar nossos afetos, trazendo a cena um fragmento de real. No caso dos escândalos de corrupção, a função seria tratar esta última como se fosse uma exceção e não a regra. Badiou defende que tal teatralização do real nos noticiários funciona, portanto, como denegação do mesmo real. É um petisco que se dá a opinião pública para escandalizar, mas que serve apenas para nos colocar submissos àquilo que no fundo é a lei do mundo: a onipresença da corrupção. O que este fragmento de real exposto pela via do escândalo quer encobrir é que a corrupção nos nossos tempos é a regra; num mundo que transformou o capital no seu Deus, e que, portanto, determinou que todos têm seu preço.

Mas Badiou vai mais além. Ele afirma que a profusão de escândalos serve também para capturar a democracia em favor do discurso capitalista, ou seja, a forma de democracia que experimentamos hoje serve apenas como uma máscara agradável para encobrir o real nu e perverso do capitalismo globalizado. Suas palavras exatas são: “O semblante contemporâneo do real capitalista é a democracia. É a sua máscara”. Badiou que perdoe a minha metáfora porca, mas é como se a democracia atual servisse apenas para nos dar esse recado: “Tá uma bosta sim! A maioria tá ferrada em detrimento do sucesso de alguns, afinal, vale se salvar explorando o outro, o Planeta tá nas últimas, mas pelo menos você tá sabendo de tudo e participando de tudo. Disso não pode reclamar, ne?”

No Brasil atual experimentamos claramente esta democracia de fachada, que nos convida a participar apenas como meros expectadores ou debatedores nas redes sociais, tal como fazem os fãs de séries de TV. Às vezes somos colocados, no máximo, como coadjuvantes, mobilizados em grandes movimentos de rua, que se transformam, sobretudo, em novos espetáculos, fotografados, televisionados e transmitidos nas redes, mas que, no final das contas, parecem servir apenas como uma espécie de catarse coletiva ou expiação de culpa por nossa real apatia e imobilidade. São movimentos que parecem apenas nos dar uma falsa noção de que estamos exercendo a democracia, quando o comando, de fato, acontece nos bastidores dos poderosos, sustentado por um cinismo compartilhado por todos. Lembrando que quem tem realmente o poder na nossa sociedade são os endinheirados e não, necessariamente, os governantes. No Brasil tal verdade ficou escancarada nos últimos meses, governantes e políticos são apenas marionetes nas mãos das grandes corporações. A democracia comandada pelo capital é uma farsa.

Eu não sei como faremos para nos tornarmos atores do nosso tempo ou como conseguiremos radicalizar a experiência da democracia, a fim de retira-la desta farsa que se tornou. Por hora, tenho, pelo menos, tentando sair da anestesia que essa sobreposição de escândalos vinha me provocando. Pois, não se iludam! Quanto mais tal encenação se presta a “revelar” corrupções tanto a esquerda quanto à direita, mais ela serve para encobrir a perversidade que o capitalismo globalizado nos fez mergulhar. Escândalos que ora agradam a uns e ora agradam a outros, são escândalos que agradam a todos, e que, no final das contas, só se prestam a nos manter passivos e imóveis.

A questão enfim é: o que fazer com este real que se revela, mas velado por essa máscara palatável travestida de democracia? Talvez desnudá-lo e escancará-lo seja a primeira medida, não se iludindo com as farsas produzidas, especialmente pela imprensa, mesmo quando a farsa nos agrada. A segunda medida demanda ação, mas, sinceramente, tenho me tornado cética com relação àquelas que temos produzido em grandes massas: passeatas, comícios, eventos de rua. Posso estar enganada, e espero sinceramente que eu esteja, mas me parecem apenas encenação, parte de um roteiro já estabelecido.

Eu não sei por que me veio em mente agora a heroína Lisbeth Salander da trilogia Millenium, escrita por Stieg Larsson e retratada em filme pelo diretor Niels Arden Oplev. Lisbeth é uma hacker que já perdeu todas as ilusões deste mundo e decide fazer sua resistência e sua revolução de forma anônima e solitária, navegando pelos meandros e interstícios da Internet. Lisbeth reconhece e admite que todos os semblantes que sustentam nosso mundo estão apodrecidos, mas, ao contrário do que a maiorias dos heróis homens fariam, ela não está disposta a recompô-los ou reordená-los. Lisbeth tem um estilo andrógino, mas é uma mulher, e só uma mulher poderia se posicionar tão radicalmente na função de deixar tombar os grandes alicerces fálicos que sustentaram este mundo até então. Sim! Lisbeth é uma heroína feminista, mas feminista da maneira mais radical e revolucionária, porque sua luta não tem um tom de queixa – ela não é vitimada e nem ressentida – mas também porque ela não se dispõe e travar batalhas fálicas que empunham armas e disputam poder. Nossa heroína trava suas batalhas nas frestas, nas falhas abertas, na miudeza, no silêncio, na solidão e, por que não, na delicadeza. Lisbeth é um maravilhoso contraponto com outra heroína que vi no cinema este fim de semana – a Mulher Maravilha – que apenas repete o modelo masculino de poderio, que exerce seu feminismo para travar as mesmas lutas fálicas que os homens vêm travando ao longo da história e recuperar os mesmos semblantes que já demonstraram não interessarem mais à civilização, se quisermos sobreviver. No finalzinho do filme, em forma de Diana, a deusa-heroína parece que irá apontar numa outra direção, mas em seguida veste de novo seu traje fálico e salta poderosa e retumbante por sobre o mundo; cena que encerra o filme.

O mundo e os semblantes que o sustentaram até então estão ruindo. Teremos o time dos cínicos que continuarão fingindo ou tentando nos provar que está tudo bem, e teremos o time dos heróis e das heroínas que, empunhando suas armas fálicas, farão de tudo para reerguer tais semblantes. Alguma coisa me diz que Lisbeth é que está certa...

Rita Almeida

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