quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

A estratégia dos condomínios para lidar com o mal-estar das cidades O que a psicanálise poderia dizer sobre isso?

por Rita Almeida

Sou uma aficionada pela série americana The Walking Dead, que é uma adaptação para a TV da obra homônima dos quadrinhos, criada por Robert Kirkman e desenhada por Tony Moore. Para quem não acompanha, a série, que está na sua 7ª temporada, narra a história de um grupo de pessoas que tenta sobreviver após um apocalipse zumbi. Todavia, a luta cotidiana pela sobrevivência e as cenas de suspense ou terror são apenas pano de fundo para o que é mais interessante na série: o desenrolar de como os sobreviventes vão tentando lidar com o mal-estar que está colocado – no caso, a ameaça zumbi – e que implicações éticas isso desencadeia.

Freud dirá que o mal-estar é constitutivo da cultura humana, ou seja, uma vez que ingressamos no mundo da linguagem, perdemos o paraíso, ou melhor dizendo, o mundo não pode ser para nós aquilo que é em si, será sempre aquilo que representamos, que desejamos ou que imaginamos. Nesse sentido, nossa relação com o mundo e com os outros é sempre de insatisfação, de mal-estar, não importa como estes se apresentem. Mas a questão que sempre intrigou Freud e sua psicanálise foi: O que fazer com este mal-estar para o qual não há cura?

No cenário apocalíptico de The Walking Dead o mal-estar está muito bem circunscrito e definido. O mal-estar são os zumbis, muito facilmente identificáveis por suas roupas maltrapilhas, seus corpos cadavéricos e seus andares claudicantes, e resolver o mal-estar também é algo relativamente simples: atirar, esmagar ou furar seus crânios. Talvez isso explique o grande sucesso da série no mundo todo, o fato de experimentarmos com ela relativo conforto, já que, de certa forma, a vida dos sobreviventes da ficção é muito mais simples que a do nosso mundo real, pois, ao contrário de nós, eles já têm identificados tanto o mal-estar quanto a solução para ele.

Mas o que me aparece genial na série é que, à medida que as temporadas vão avançando, fica cada vez mais evidente que os zumbis não são o maior problema. Para o grupo de sobreviventes que protagoniza a série, mesmo num mundo infestado por zumbis a ameaça mais cruel e perversa vem de outros viventes. É a maneira como alguns grupos e indivíduos vão lidar com o mal-estar instalado que se torna a maior ameaça.

Nesse sentido, as questões éticas discutidas na série são muito interessantes, afinal, diante do caos e da necessidade de sobreviver chega-se a um limite: aquele que vai definir quais viventes vão se manter dentro do espectro ético que definimos como humanos. E exatamente aí se evidencia o conflito trabalhado na obra, porque enquanto os zumbis – os mortos-vivos – são facilmente identificáveis e elimináveis, os vivos-mortos não, o que faz desses últimos mais temíveis e perigosos. Os vivos-mortos são aqueles que mesmo estando entre os sobreviventes, estão mortos, de certa forma, mortos para uma ética compartilhada que caracterizaria aquilo que chamamos de humanidade. Os vivos-mortos são aqueles que não se tornaram zumbis, mas mesmo assim perderam grande parte de sua humanidade.

Isso nos faz pensar que a humanidade, aquilo que nos enlaça a uma comunidade, não é algo dado a nós junto com a existência. Enquanto o João de Barro nasce João de Barro e será João de Barro até o fim, nós não nascemos humanos. Tampouco a humanidade está garantida depois de conquistada, porque não é um dado biológico, é uma construção no campo do simbólico e, como tal, pode se perder. A humanidade não é algo natural para os seres humanos.

Mas quero tratar aqui é do modo como os diferentes grupos lidam com o mal-estar instalado a partir do apocalipse zumbi. Certos grupos ultrapassam alguns limites éticos compartilhados, mas mantém outros, alguns criam novos códigos de conduta próprios, há os que tentam preservar tais limites éticos, e outros, ainda, os perdem significativamente, vivem quase como animais.

A partir da 5ª temporada dois desses grupos vão se cruzar. Ambos optaram por manter preservados os limites éticos humanos, mas cada um de uma maneira diferente. O grupo que protagoniza a série, liderado pelo ex-policial Rick, eventualmente se protege em algum tipo de espaço circunscrito, quando isso é possível e necessário, mas também está sempre se movimentando, buscando novos caminhos e enfrentando “o mundo lá fora”, aquele que está infestado de zumbis. Já o outro grupo, que aparece no final da 5ª temporada, criou no meio do caos uma cidade completamente murada, Alexandria. Em Alexandria tudo deve funcionar como funcionava antes dos zumbis. Trata-se de uma espécie de oásis. O recurso utilizado pela comunidade de Alexandria para lidar com a realidade é evita-la ao máximo, criando uma redoma para si.

É impossível não comparar Alexandria com os condomínios fechados, tão comuns nas cidades brasileiras, especialmente nos centros maiores. Os condomínios surgem também nessa tentativa de criar uma redoma de proteção contra a realidade violenta e insegura. Mas o que podemos dizer sobre esse modo de lidar com a realidade, à luz da psicanálise?

Voltemos a The Walking Dead. Há um momento em que o grupo liderado por Rick encontra a comunidade de Alexandria e, de certa forma, é acolhido por ela. A partir disso, fica evidente a diferença entre o modo de lidar com a realidade de cada um dos grupos. Enquanto o primeiro grupo lida com a realidade de modo a enfrenta-la e se relacionar com ela, o segundo prefere criar uma espécie de mundo paralelo, que faz de tudo para rejeitar e negar a realidade. Para retratar tal diferença, citarei um diálogo muito interessante entre Rick e o marido da líder de Alexandria, o arquiteto Reg, responsável pelo projeto do muro em torno da cidade. No diálogo, Rick elogia Reg, afirmando que ele fez um belíssimo trabalho em seu projeto de cercar a comunidade. Mas Reg responde que foi Rick quem fez um trabalho incrível lá fora, liderando seu grupo para sobreviver em meio ao caos. “O que eu fiz é apenas um muro”, finaliza Reg.

No meu entendimento, Reg tem toda razão. Um muro é apenas um muro, não pode ser considerado um grande feito em se tratando de resolver nossas mazelas. Criar muros para cercar aquilo que nos causa mal-estar, não tem sido uma estratégia de sucesso ao longo da história. Fizemos isso com os loucos (em menor medida ainda fazemos), fazemos isso com os criminosos, e em nenhum dos dois casos temos tido o sucesso esperado, ao contrário.

Já com os condomínios fechados, parece que a ideia seja colocar a nós mesmos entre muros, na ilusão que poderemos deixar o mal-estar do lado de fora. Mas a psicanálise nos ensina que, se existe um modo fracassado para lidar com o real, ou mal-estar que nos assola, é aquele que sempre o evita e rejeita. Criar um mundo fictício, murado, privado dessa relação com o mundo real – ainda que este seja cruel e ameaçador – não nos tornará mais eficientes e capazes de lidar com ele, ao contrário, nos fará cada vez mais frágeis e impotentes diante do mesmo.

Voltando à série, temos a fala de Carl, filho adolescente de Rick que, em poucos dias morando em Alexandria, repara e comenta com o pai: “Eles são fracos”. O rapaz está correto. A cidade sitiada cumpre a função de proteger seus moradores, mas, por outro lado produziu humanos frágeis, débeis, incapazes de lidar com a realidade de onde Carl veio. Carl vive no apocalipse desde a infância, foi educado nele e para sobreviver a ele.

E é claro que a estratégia usada por Alexandria tem duração limitada. O apocalipse zumbi continua em marcha e numa crescente do lado de fora, e não há o que fazer quanto a isso. Por mais que se evite e rejeite o mal-estar, em algum momento ele irá atravessar os muros e invadir a realidade, e é exatamente isso que acontece na série. Por isso, a estratégia dos muros é sempre ruim, pois além de não resolver o problema, ainda debilita e fragiliza os que ficaram ali cercados. Enquanto o grupo liderado por Rick se teceu e se fortaleceu criando estratégias para lidar com a realidade zumbi, os moradores de Alexandria se alienaram em sua redoma. Sendo assim, quando a realidade chegar, e obviamente que ela chegará para todos, nós sabemos exatamente quem terá mais condições de lidar com ela.

Todavia, assim tem sido a estratégia que temos utilizado para lidar com o mal-estar das grandes cidades, especialmente no que toca à violência. Nos cercamos em condomínios, certos de estarmos seguros em nosso oásis belo e feliz. Entretanto, tal ilusão tem seus dias contados, afinal, o mundo do lado de fora continua em marcha. Fechados em suas bolhas os “cidadãos de bem” acreditam estar a salvo do mundo “contaminado pelo mal”, assim, não precisam se dar ao trabalho de lutar ou intervir lá fora. A estratégia dos condomínios está produzindo pessoas cada vez mais alienadas em sua relação com o mundo, incapazes de tomar a cidade, a política e os espaços públicos como de sua responsabilidade. Sob o prisma dos condomínios o outro é sempre tomado como estranho, perigoso e ameaçador.

Mas será que não haveria outra forma de lidar com nossos mal-estares que não seja simplesmente padecendo ou nos protegendo deles? A psicanálise, com sua ética, nos convida a lidar com o mundo a partir do real. O real é aquilo que nos assola, o que não podemos significar completamente, que nos causa mal-estar porque escapa ao contorno do simbólico. Partir do real como ferramenta ética seria, portanto, não recusar e rejeitar o mal-estar, mas se deixar atravessar por ele para, a partir dele, construir caminhos e estratégias. Se o mal-estar é inevitável e permanente, nega-lo apenas nos torna frágeis e impotentes para lidar com ele.

Em The Walking Dead o grupo protagonista escolheu lidar com o real apocalíptico enfrentando-o, se movimentando, criando laços e inventando estratégias, tudo isso sem se furtar aos embates necessários. Obviamente que tais embates não se fazem sem perdas e danos, mas por outro lado, é isso exatamente que vai fortalecendo e tecendo um certo estilo do grupo para lidar com seu mundo decadente. Alexandria, por sua vez, do modo como foi idealizada, teve seus dias contados. Cumpriu, apenas por algum tempo, a função de isolar e proteger seus cidadãos entremuros, além disso, fez deles sujeitos débeis e frágeis para lidar com o mundo real.

Se a vida imita arte, como dizem, a estratégia dos condomínios igualmente fracassará, se é que já não está fracassando. E talvez já estejamos vivendo os reflexos da debilidade que eles têm produzido, quer seja, um descolamento cada vez mais frequente das pessoas da noção de cidadania. Ser cidadão, nesse ponto, é compreender que a cidade também é minha responsabilidade e só pode melhorar com a minha participação política ativa e que, além disso, ela não será boa para mim e o que me é familiar se também não for boa para muitos, inclusive para os que eu considero estranhos. Não trataremos das mazelas da nossa civilização cuidando apenas dos jardins dos nossos condomínios. Aliás, o mosquito transmissor da dengue está aí para não deixar que a gente se esqueça disso. Mas isso já é tema para um outro texto.







quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Desenterrando Dercy num programa de TV: alcançamos o limite da barbárie.

por Rita Almeida

Esta semana sofri aquele tradicional abalo na crença num mundo melhor ao ler uma reportagem sobre as gravações de Gugu Liberato para a nova temporada do seu programa na Record, e que talvez anuncie que tenhamos alcançado o limite da barbárie. Gugu fez uma visita ao túmulo de Dercy Gonçalves a fim de conferir se ela foi mesmo sepultada de pé, como era de sua vontade. Tal visita foi acompanhada e, certamente, autorizada pela filha da falecida.

Uma longa entrevista de Charles Melman à Jean-Pierre Lebrun, ambos psicanalistas, resulta no livro: O homem sem gravidade, que contribui para o incessante debate sobre o mal-estar na civilização, inaugurado por Freud. O livro trata do que Melman chama de “a nova economia psíquica”, economia na qual o que se persegue é que o gozo triunfe sobre o desejo. Explico: Benito de Paula nos avisava nos idos de 77 que “nem tudo pode ser perfeito, nem tudo pode ser bacana” já que não seria possível “assoviar e chupar cana”. Hoje rejeitamos a escolha do desejo e perseguimos o gozo sem limites, ou seja, acreditamos ser possível “assoviar e chupar cana”. No século que se anuncia, dirá Melman, não há mais impossível, vivemos a era do “ultrapassamento dos limites”.

Me sirvo da inusitada temática do Programa do Gugu para tratar aqui desse “ultrapassamento dos limites”. É importante que se diga, já de partida, que quando se fala de “ultrapassar o limite”, não se trata de evocar um discurso moralista puro e simples, como se tal ultrapassamento fosse uma espécie de subversão às regras e normas sociais. Não é essa a questão. Até porque, para subverter limites, regras e normas, é necessário partir do pressuposto que eles existem e nos servem de algum modo. Sendo assim, o que assistimos hoje não é o ultrapassamento do limite como desobediência ou subversão, mas como pulverização, como apagamento; é como se tal limite nem mesmo existisse.

Apenas uma desconsideração total de que deva haver um limite a partir do qual deixamos de ser humanos, poderia conceber um programa de TV onde se faz a exumação de um corpo/cadáver com o intuito de aplacar a curiosidade alheia e, obviamente, angariar telespectadores. E ainda mais espantoso é pensar que a própria filha da falecida concordou, vai participar e muito possivelmente recebeu algum retorno financeiro em tal empreitada.

Melman chama de “suspensão do recalque” a falta de pudor que temos hoje para desvelar o que antes mantínhamos sob um véu. Acreditávamos que nosso mal-estar era apenas fruto da repressão excessiva que a civilização impunha sobre nós e que a suspensão de tal repressão, a fim de permitir a expressão nua e crua do nosso desejo, seria a cura; nossa libertação. Entretanto, não foi o que aconteceu. Se com a psicanálise aprendemos que o mal-estar é inerente à condição humana, obviamente que novas formas de mal-estar surgiram, e o que elas têm em comum é compactuarem com esse desvelamento do gozo. Se um dia tudo estava sob o véu do recalque, hoje a ordem é exibir; nada pode ser dissimulado.

Nesse sentido, nem mesmo a morte com sua inscrição no campo do sagrado (sagrado no sentido de não estar ao alcance da nossa compreensão), é poupada desse desvelamento. Não só é permitido, mas é necessário que se abra o túmulo de uma pessoa diante das câmeras para que milhares de telespectadores satisfaçam sua curiosidade, que nem pode ser chamada de mórbida, porque se tornou banal. Dias atrás a internet também noticiou que um cadáver exposto numa praia de Florianópolis não mudou em nada a rotina dos banhistas. Tudo pode ser visto, sem o menor pudor.

As consequências da pulverização dos limites e da suspensão do recalque têm produzido essas e outras bizarrices na TV e fora dela, como temos visto, no entanto, o mais preocupante é que elas anunciam a barbárie. A barbárie, segundo Melman, consiste numa forma de relação social organizada por um poder que não é simbólico, mas real. Ou seja, na falta de um limite simbólico compartilhado, emergem formas de poder amparadas na força bruta. Diante da angústia que o esgarçamento dos limites provoca, assistimos a emergência de autoridades despóticas, que Melman chama de “fascismo voluntário”. São lideranças que se autorizam a sim mesmas a partir de uma aspiração social. Diante do desbussolamento coletivo, demanda-se alguém que venha novamente dizer o que se deve ou não fazer. Se o limite não aparece compartilhado, retorna encarnado em alguém.

Talvez isso explique o sucesso das religiões neopentecostais, cada vez mais rígidas, com limites morais muito bem claros e definidos, e o aparecimento de lideranças políticas na chamada, nova direita, que legislam em favor de uma moral coletiva que norteie a sociedade, e que tolera, inclusive, que ela possa ser alcançada por meio da força, se necessário. Também não é incomum que religião e política andem juntas e se sobreponham nessa empreitada. Especialmente no Brasil tal movimento está numa crescente.

Enfim, para novas formas de mal-estar são necessários novos modos de intervenção, e a ética que advogo nos convida a construir aquelas que evitem a barbárie e que façam laços por meio da linguagem, que é aquilo que nos humaniza. Quanto ao programa de TV citado eu desejo, sinceramente, que exista algum tipo de vida após a morte e que Dercy apareça de algum modo tecendo seu conhecido rosário de palavrões para desacatar Gugu, a filha, e quem mais esteja assistindo essa bizarrice, porque é isso exatamente que todos esses merecem. E pensando bem, só mesmo Dercy teria o vocabulário adequado para colocar em palavras tamanha babaquice. Só isso seria capaz de nos redimir dessa vez.